segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

NOVIDADE

VENHA PRO NOSSO NOVO ENDEREÇO:

http://cronicasereflexoes.wordpress.com/

ATÉ JÁ........................

sábado, 23 de janeiro de 2010

FAZENDO AS MALAS

Prepare-se. Devemos mudar mais uma vez. Estou testando um outro endereço para o Pessoa. Parece que oferece mais recursos, e eu ainda gosto de fazer as malas. Pretendo desembarcar na próxima segunda, aniversário de nossa cidade.
Você será devidamente avisado. E convidado a chegar. Faremos a festa.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

SONHAR, SONHAMOS

‘Quando um espírito é inclinado ao sonho, não devemos mantê-lo afastado deste, não lhe devemos racionar. Enquanto o senhor desviar o espírito de seus sonhos, ele não os conhecerá, e será o senhor o joguete de mil aparências, porque não compreendeu a sua natureza. Se um pouco de sonho é perigoso, não é menos sonho que há de curá-lo, e sim mais sonho, todo o sonho. É preciso conhecer inteiramente os nossos sonhos para não mais sofrer com eles: há uma separação da vida e do sonho tão útil de fazer que me pergunto se não deveria ser praticada preventivamente, assim como pretendem certos cirurgiões que se extirpe o apêndice em todas as crianças, para evitar a possibilidade de uma futura apendicite’.

A Sombra Das Raparigas Em Flor. Marcel Proust.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

DA JANELA


A psicanálise, você sabe, foi criada por Freud, no início do século passado, quando então foram postulados conceitos que sobrevivem até hoje. Em nossos tempos, é com muita naturalidade que as pessoas se referem ao Inconsciente, aos atos falhos, complexo de Édipo e outras expressões que foram ganhando a boca do povo no decorrer destes anos.

Acho divertido fazer analogias entre os postulados deste conhecimento e algumas manifestações artísticas, especialmente as literárias.

Sabemos que o termo Inconsciente define uma instância obscura e pulsante, de onde emanam paixões, medos, sensações, que podem repercutir neste ou naquele comportamento. Pois, veja você, contemporâneo do médico austríaco, lá em Portugal, Fernando Pessoa escrevia:

'Para onde vai minha vida e quem a leva?
Por que faço eu sempre o que não queria?
Que destino contínuo se passa em mim na treva?
Que parte de mim, que eu desconheço, é que me guia?

O meu destino tem um sentido e tem um jeito,
A minha vida segue uma rota e uma escala,
Mas o consciente de mim é um esboço imperfeito
Daquilo que faço e sou: não me iguala'.

Podemos relacionar as inquietações do poeta, à existência deste universo obscuro e que se constitui no ‘destino contínuo que se passa em mim na treva’, correto? Creio que sim.

Freud em sua configuração do aparelho mental (EGO – ID – SUPEREGO) atribuiu ao ID o reservatório da energia psíquica onde se ‘localizam’ estas pulsões.
Muitas décadas depois, ao Sul do Equador – onde não há pecado - Chico Buarque indagou, com a perspicácia dos grandes artistas:

'O que será, que será?
Que vive nas idéias desses amantes
Que cantam os poetas mais delirantes
Que juram os profetas embriagados
Que está na romaria dos mutilados
Que está na fantasia dos infelizes
Que está no dia a dia das meretrizes
No plano dos bandidos dos desvalidos
Em todos os sentidos...

Será, que será?
O que não tem decência nem nunca terá
O que não tem censura nem nunca terá
O que não faz sentido...

O que será, que será?
Que todos os avisos não vão evitar
Por que todos os risos vão desafiar
Por que todos os sinos irão repicar
Por que todos os hinos irão consagrar
E todos os meninos vão desembestar
E todos os destinos irão se encontrar
E mesmo o Padre Eterno que nunca foi lá
Olhando aquele inferno vai abençoar
O que não tem governo nem nunca terá
O que não tem vergonha nem nunca terá
O que não tem juízo...'

Pois bem, Chico, é o vibrante ID que não tem governo nem nunca terá, que não tem censura nem nunca terá.

Colocando Jorge Amado neste sarau e lembrando que esta canção foi o tema principal do filme Dona Flor E Seus Dois Maridos, digamos que Vadinho era todo ID, e Teodoro, a encarnação possível do SUPEREGO. Coube à delicada e fogosa Flor articular estas duas potências em seu tabuleiro sacolejante: o EGO.

Se você tem algum interesse por psicanálise deve saber que o principal objetivo de sua prática é fazer aflorar a maior quantidade possível de material inconsciente para que possa ser ‘avaliado’ ali, à luz da consciência, e assim, proporcionar novas alternativas de comportamento ao ‘analisado’. As técnicas concernentes não são objeto destas reflexões, mas veja o que Clarice Lispector escreveu, referindo-se a seu ofício de escritora:

‘A caminhada é longa, é sofrida, mas é vivida. Não estou brincando com palavras. Encarno-me nas frases voluptuosas e ininteligíveis que se enovelam para além das palavras. Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa não palavra – a entrelinha – morde a isca, alguma coisa se escreveu. Uma vez que se pescou a entrelinha, poder-se-ia com alívio jogar a palavra fora.’

Sou psicoterapeuta. ‘A palavra pescando o que não é palavra’: Não é outro o meu ofício. E, sim, minha vibrante Clarice, quando a entrelinha morde a isca, é o inconsciente quem se manifesta.

Por intuir, contudo, que a coisa não terminaria por aí, Clarice vai mais longe: ‘A não-palavra ao morder a isca, incorporou-a. O que salva então é escrever distraidamente...’
Escrever distraidamente poderia ser a ‘atenção flutuante’, modo como a psicanálise orienta o analista a ouvir seu paciente. Com a menor expectativa de que for capaz, um ouvido o menos viciado possível. Aliás, esta prerrogativa é de grande utilidade na vida cotidiana e, provavelmente, facilitaria muitos relacionamentos e abriria porta para a verdadeira intimidade, quando é isto o que se pretende. Tente, ao avaliar uma situação, conter suas tendências pessoais, preconceitos, pressupostos teóricos, sua ‘experiência’ e afins - Experimentar uma atenção flutuante - Duvidar um pouco de si mesmo pode ser, eventualmente, providencial. Trabalho para uma vida inteira, ninguém duvida, mas vale.

Fala-se hoje, até no cafezinho, de pessoas que apresentam distúrbio bipolar: aquelas que alternam períodos de hiperatividade, extremada alegria, imaginação desenfreada, com outros de profunda tristeza, apatia e desinteresse geral. Sol vibrante e noite preta.

- Nunca sei com que humor vou encontrá-la em casa – ouvi, de orelhada, enquanto passeava com Bento, um dia destes.
- Tua mulher é bipolar, cara – emendou o companheiro de caminhada. E seguiram adiante.

Jamais saberemos o que se passa naquela intimidade sugerida (vai ver ela é apenas temperamental), mas no começo do século passado, Michel Proust escreveu, em sua A Procura do Tempo Perdido, aludindo a uma recorrente variação de estado de espírito de seu protagonista:

‘E aquilo (a tristeza da noite) duraria até a manhã seguinte, quando os raios de sol apoiassem suas barras, como o jardineiro sua escada, contra o muro coberto de capuchinhas que subia até minha janela, e eu saltasse do leito para descer logo ao jardim sem já me lembrar de que a noite voltaria a trazer consigo a hora de separar-me de minha mãe. E assim, aprendi a distinguir estes estados que em mim sucedem durante certos períodos, e que dividem entre si cada um de meus dias, chegando cada qual para escorraçar o outro, com a pontualidade da febre; contíguos, mas tão alheios um ao outro, tão desprovidos de quaisquer meios de comunicação entre si, que, quando um deles domina, não posso mais compreender o que desejei, temi ou fiz no outro estado’.

Não é ilustrativo?

Paremos por aqui. Você também fará incontáveis associações.

São muitos os pigmentos de uma mesma cor, inúmeras as tramas de fio que resultam em um certo tecido. Tudo são filigranas que perscrutam a seiva da vida.
Janela na qual é sempre prazeroso debruçar.


Na fotografia, 'forro' de um restaurante na Ilha do Mosqueiro, no Pará.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

O RIO QUE CORRE ESTRELAS

Foi quando descobri os seis ovos branquinhos, branquinhos, no meio do mato como numa manjedoura, que fui tomado por uma súbita alegria, o prazer absoluto, estupefato, que me vibrou o coração, me eriçou os pelos, me desnudou a alma. Eu me comprometi com aquela visão, aquele achado. Entrei em sintonia e aprendi naquele momento a guardar segredos.

Então, corri até a cozinha de chão batido e, com sofreguidão, macerei os meus medos no pilão de madeira de minha avó.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

PESSOA/ÁLVARO DE CAMPOS

Em alto e bom som:


Lisbon Revisited
(l923)

NÃO: Não quero nada.
Já disse que não quero nada.
Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.

Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!

Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) —
Das ciências, das artes, da civilização moderna!

Que mal fiz eu aos deuses todos?

Se têm a verdade, guardem-na!

Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?

Não me macem, por amor de Deus!

Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?

Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia!

Ó céu azul — o mesmo da minha infância —
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflete!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.

Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!

domingo, 17 de janeiro de 2010

PAIXÃO


Outra vez a paixão.

A recorrente graça, a justa inquietação diante do espelho, o lixo empurrado para debaixo do tapete e, da janela, o aceno irrecusável da montanha russa.
Três loopings no escuro - só pra começar – acionando cometas em um fake céu de estrelas. Cadentes e ensandecidas. E no ponta-cabeça, braços estirados no vazio. Sem gritar. Porque é grave, gutural. Grave, não se engane. A paixão é aguda em sua dinâmica, mas ruge em contralto no peito. Digamos que você a credencia com a seriedade de um Pavarotti, embora a interprete com a destemperança e os trinados de uma Dalva de Oliveira.

A paixão traz na bagagem tantas promessas e uma tamanha vitalidade, que qualquer pequena ameaça de fenecimento promove uma imediata cianose na alma. Seguida de uma brutal falta de ar que, desta vez, sim, te levará a nocaute. Por isso tantos telefonemas, tantos emails, tantos torpedos e chamados, e as esperas, as esperas, as esperas. Pelo telefone, os emails, a campainha, as chamadas, os sinais de fogo. A confirmação. É sobrevivência, esqueceu?

Uma sentença sempre pronta para ser jorrada boca afora: - Abram estas janelas que eu preciso RESPIRAR!

Que não é dita, porque paixão é para ser vivida na poluição, os olhos ardendo, a boca seca. Ou não deveria, mas são poucas as que resistem a uma boa lufada de ar. Ar livre é perigosíssimo porque paixão tem pavor de espaços abertos.

Esta louca, além da fumaça, solicita óculos escuros, descongestionante nasal, cortinas cerradas, mudança de repertório no Ipod e uma miopia cavalar, de aparecimento súbito. Mudança de foco. Nada muito diferente de neon, taquicardia, adrenalina e Disney World terá qualquer importância. E vamos combinar que um tempo naquela vidinha medíocre, naqueles amigos sempre às voltas com a rotina de suas relações padronizadas, há muito se fazia necessário. O lema permanecerá aquela bela frase com a qual você fuzilou a amiga que sempre desvalorizou estes sentimentos arrojados: - O amor entorpece os acomodados; a paixão mobiliza os incomodados. Tá?

Será assim que iremos rasgar o manto diáfano da mediocridade.

E segue, apertando a bolsinha na axila, o sapato de salto, lenço vermelho no pescoço e a saia muito justa lascada atrás.

É quase certo que paixão é para ser vivenciada de copo na mão. Será com ele, alguns comprimidos de diazepam, duas ou três canções exasperantes e aquela única amiga que sobreviveu a seu bombardeio (‘afinal, ele está ou não está interessado em mim?’) que você enfrentará este mundo hostil. Sim, porque passada a projeção geral de início, ninguém, em juízo de razão, terá muita paciência de participar deste tour-de-force a seu lado. (Você já deve ter percebido que as pessoas não são propriamente um primor de sensibilidade, correto?). E mesmo esta companheira sobrevivente correrá serio risco de evaporar quando você finalmente abrir seu coração: ‘afinal, ele está me amando, ou não está?’

Diante de tamanha vulnerabilidade, você se sentirá flagrada pelas garras da lei. Todas as suas (antigas) qualificações, sob júdice - Uma farsa -. E o seu pior, a sua sombra, correndo solta sem segredo de justiça. A um passo do desmascaro. Que em outros tempos não seria grande coisa, afinal você também aprendeu muito cedo que a língua do povo é contumaz traiçoeira, mas, agora, qualquer avaliação de sua frágil pessoa passa pelo cajado deste juiz implacável, e atender a suas exigências vai se tornando uma gincana cada vez mais exaustiva.

Mas...but, sempre um but...um belo dia você sente uma tremenda saudade daquele pijaminha esgarçado que foi parar no fundo da gaveta desde que as langeries pretas e vermelhas roubaram a cena. E vai se lembrar que aprendeu a amar com a Bethânia (‘D-R-A-M-A, e ao fim de cada ato limpo num pano de prato as mãos sujas do sangue das canções’), mas que, talvez, seja hora de recorrer ao sempre jovem Nelson Mota: ‘A vida vem em ondas como o mar...’ e dar uma surfada por aí.

Como Santa Rita de Cássia realmente não dorme no ponto, você consegue o feito inimaginável de desmarcar o jantar daquela noite. E, pior, sem inventar nenhuma desculpa espetacular. Vai direto ao ponto: - Aluguei 'As Delícias De Viver Só', e tô a fim de assistir sozinha. - Só hoje, viu? – Ronrona, ao final, quase por vício.

Começou a se montar a rebelião. E o filme daquela paixão lhe vem à cabeça, de trás para frente e, vai saber porquê, detalhes da cenografia antes desapercebidos vêm à tona, diálogos negligenciados revelam a que vieram, e figurantes inexpressivos começam a ameaçar seriamente os atores principais. Tudo levará a crer que você não era tão somente a primeira atriz, mas a própria autora deste vibrante roteiro.

Será, enfim, evocando detalhes e palavras, que você perceberá, por exemplo, que o ‘mea culpa’ da noite passada era absurdamente equivocado, e que um bom vasodilatador peniano a teria poupado de acrobacias perfeitamente dispensáveis.

- Eu não acredito! – Será capaz de berrar, já em fúria.

Mas, então, o doce pássaro da liberdade estará cantando em seu ombro, e alguma tranqüilidade vai chegando, ternamente. Pega caneta e papel, e escreve, para não esquecer: Este medo, lobo voraz, devora vacas leiteiras no curral. A coragem é um carneiro pastando, comendo capim, tomando forma, ganhando peso.

Poderá, então, desligar a TV, acarinhar o travesseiro vazio, se alongar na cama, e hibernar pelos próximos dez anos quando, em outro belo dia de sol, vai abrir a janela e perceber que o parque de diversões retornou à sua rua, e ela, a montanha-russa, volta a acenar uma outra vez.

sábado, 16 de janeiro de 2010

LEITURA DE SÁBADO

Encontrei esta entrevista do Mario Quintana - que, na verdade, nunca aconteceu - e achei interessante porque reflete bem sua visão lúdica da vida. Aliás, a perspicácia, irreverência e capacidade de síntese deste poeta me entusiasmam. Trouxe aqui.

AUTO RETRATO: EU SOU MARIO QUINTANA

Carlos André Moreira
Jornal Zero Hora, Porto Alegre/RS - Caderno Donna, em 30-07-2006.

Exatamente há cem anos, nascia em Alegrete o poeta Mario de Miranda Quintana, cujo centenário motivou este ano exposições, peças, especiais de TV e, claro, a reedição integral de sua obra – da qual foram retirados os trechos de poemas e crônicas que formam a entrevista imaginária abaixo.

Qual a sua lembrança de infância mais remota?
Fui um menino por trás de uma vidraça – um menino de aquário. Via o mundo passar, como numa tela cinematográfica, mas que repetia sempre as mesmas cenas, as mesmas personagens.

Onde você passou as suas férias inesquecíveis?
O que estraga as viagens, agora, é o seu rápido destino: de repente já estás em Pequim... Benditos, mil vezes benditos aqueles carrosséis que ensinaram aos meninos de meu tempo a pura alegria de viajar!

Qual a sua idéia de um domingo perfeito?
No céu é sempre domingo. E a gente não tem outra coisa a fazer senão ouvir os chatos.

O que você faz para espantar a tristeza?
O único problema da solidão consiste em como conservá-la.

Que som acalma você?
Quando os sapatos ringem...

Qual a palavra mais bonita da língua portuguesa?
Clair de lune, chiaro de luna, claro de luna... jamais os franceses, os italianos e os espanhóis saberão mesmo o que seja o luar, que nós bebemos de um trago numa palavra só.

Que livro você mais cita?
Livro bom é aquele de que às vezes interrompemos a leitura pra seguir – até onde? – uma entrelinha... Leitura interrompida? Não. Esta é a verdadeira leitura continuada.

Que filme você sempre quer rever?
...devia ser proibido fazer desenhos animados depois de Walt Dysney.

Um gosto inusitado.
O que eu mais adoro, depois da precisão, são os expletivos.

Um hábito de que você não abre mão.
Alarmar senhoras gordas é um dos maiores encantos desta e da outra vida.

Um hábito de que você quer se livrar.
O que eles chamam de nossos defeitos é o que temos de diferente deles. Cultivemo-los, pois, com o maior dos carinhos – esses nossos benditos defeitos.

Um elogio inesquecível.
Poeta de amplo espectro, como se diz nas bulas farmacêuticas. Assim se expressou um dia a respeito deste escriba o seu cúmplice em poesia e colendo crítico Guilhermino César. O que bastou para que alguém me interpelasse: “Como é? Ele está te chamando de fantasma?”

Em que situação você perde a elegância?
O mais irritante de nos transformarem um dia em estátua é que a gente não pode coçar-se.

Em que outra profissão consegue se imaginar?
...eu queria ser um pajem medieval... Mas isso não é nada. Pois hoje eu queria ser uma coisa mais louca: eu queria ser eu mesmo!

Eu sou...
Eu não sou eu, sou o momento: passo.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

CONTO


- Fui me confessar ao mar
- E o que ele disse?
- Nada...

Lygia Fagundes Telles

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

INFÂNCIA

Dois excertos de O Rio Que Corre Estrelas:

'Houve ali os pés de aroeira, as lonas do circo, o medo da noite. Eu acordava no meio da noite e quando conseguia falar alguma coisa, emitir qualquer som, dizia: - Mamãe, quero ir para aí.
Ela respondia de lá do fim do mundo: - Venha!
Não conseguia mexer o meu corpo, tinha apenas a boca e dizia: - Mande o papai vir me buscar.
Ele vinha e me tocava com os dedos. Sim, era o máximo que podia fazer porque não havia eu, havia cobertas sobre mim.
Eu ia devagar, reconhecendo terreno, defendendo-me de fantasmas invisíveis, trovoadas, finalmente expondo minha cara - já puxado o lençol - então me mostrando, me desnudando, e fechava novamente os olhos no exato momento em que agarrava a mão do meu pai.
Seguia assim, cego, dirigido, confiante, apaziguado, até a mansidão.
Posso, portanto, dizer: Eu conheço o paraíso. E me lembro dele.
Ele estava ali, na fortaleza daquela cabana entre mãos entrelaçadas e se chamava paz. A paz que eu vivia naquele momento e que, pelo período em que usufruía de sua centelha, era incompreensível precisar de reivindicação nas ruas'.



'Música. Há música no ar. Já não é a chuva. Violinos, talvez. Ou violões em noturnas serestas. Violões, sim.
Aqueles que, bem à distância, apaziguavam as noites atribuladas de minha infância e permitiam-me mover na cama, reconhecendo, com a pele de meus braços e pernas, a tessitura delicada do lençol e o aroma arrojado do sabão que os mantinha limpos.
Ao me permitir este discreto momento de paz e conforto começava a tecer a colcha da liberdade e a tomar intimidade com o mágico prazer que a ninguém se consegue explicar, de tão íntimo e visceral'.

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

OUTUBRO

A Folha de São Paulo publicou que dos 145 parlamentares ligados a episódios como a farra das passagens e os atos secretos, nenhum deles sofreu punição até agora. E, pior, 83% dos deputados e senadores envolvidos em algum tipo de escândalo no ano passado tentarão voltar à vida pública nas eleições de outubro ou permanecem em seus cargos por mais alguns anos.

Infelizmente não há novidades. E um exílio se perpetua. Socorro, Vinicius!

Pátria Minha

A minha pátria é como se não fosse, é íntima
Doçura e vontade de chorar; uma criança dormindo
É minha pátria. Por isso, no exílio
Assistindo dormir meu filho
Choro de saudades de minha pátria.

Se me perguntarem o que é a minha pátria, direi:
Não sei. De fato, não sei
Como, por que e quando a minha pátria
Mas sei que a minha pátria é a luz, o sal e a água
Que elaboram e liquefazem a minha mágoa
Em longas lágrimas amargas.

Vontade de beijar os olhos de minha pátria
De niná-la, de passar-lhe a mão pelos cabelos...
Vontade de mudar as cores do vestido (auriverde!) tão feias
De minha pátria, de minha pátria sem sapatos
E sem meias, pátria minha
Tão pobrinha!

Porque te amo tanto, pátria minha, eu que não tenho
Pátria, eu semente que nasci do vento
Eu que não vou e não venho, eu que permaneço
Em contato com a dor do tempo, eu elemento
De ligação entre a ação e o pensamento
Eu fio invisível no espaço de todo adeus
Eu, o sem Deus!

Tenho-te no entanto em mim como um gemido
De flor; tenho-te como um amor morrido
A quem se jurou; tenho-te como uma fé
Sem dogma; tenho-te em tudo em que não me sinto a jeito
Nesta sala estrangeira com lareira
E sem pé-direito.

Ah, pátria minha, lembra-me uma noite no Maine, Nova Inglaterra
Quando tudo passou a ser infinito e nada terra
E eu vi alfa e beta de Centauro escalarem o monte até o céu
Muitos me surpreenderam parado no campo sem luz
À espera de ver surgir a Cruz do Sul
Que eu sabia, mas amanheceu...

Fonte de mel, bicho triste, pátria minha
Amada, idolatrada, salve, salve!
Que mais doce esperança acorrentada
O não poder dizer-te: aguarda...
Não tardo!

Quero rever-te, pátria minha, e para
Rever-te me esqueci de tudo
Fui cego, estropiado, surdo, mudo
Vi minha humilde morte cara a cara
Rasguei poemas, mulheres, horizontes
Fiquei simples, sem fontes.

Pátria minha... A minha pátria não é florão, nem ostenta
Lábaro não; a minha pátria é desolação
De caminhos, a minha pátria é terra sedenta
E praia branca; a minha pátria é o grande rio secular
Que bebe nuvem, come terra
E urina mar.

Mais do que a mais garrida a minha pátria tem
Uma quentura, um querer bem, um bem
Um libertas quae sera tamen
Que um dia traduzi num exame escrito:
"Liberta que serás também"
E repito!

Ponho no vento o ouvido e escuto a brisa
Que brinca em teus cabelos e te alisa
Pátria minha, e perfuma o teu chão...
Que vontade me vem de adormecer-me
Entre teus doces montes, pátria minha
Atento à fome em tuas entranhas
E ao batuque em teu coração.

Não te direi o nome, pátria minha
Teu nome é pátria amada, é patriazinha
Não rima com mãe gentil
Vives em mim como uma filha, que és
Uma ilha de ternura: a Ilha
Brasil, talvez.

Agora chamarei a amiga cotovia
E pedirei que peça ao rouxinol do dia
Que peça ao sabiá
Para levar-te presto este avigrama:
"Pátria minha, saudades de quem te ama…

Vinicius de Moraes."

AURORA

Adélia Prado foi quem escreveu:

Uma ocasião,
meu pai pintou a casa toda
de alaranjado brilhante.
Por muito tempo moramos numa casa,
como ele mesmo dizia,
constantemente amanhecendo.

UMA CAIXA DE MÚSICA

Assisti há poucos dias um filme suave. Uma amiga suave mo indicou: Almoço em Agosto (Pranzo di Ferragosto).

O enredo não consumiu mais do que duas laudas do autor: um filho e sua mãe idosa dividem um apartamento na Roma contemporânea. O dinheiro está na ponta do lenço e eles se veem na obrigação de acolher outras três senhoras na mesma faixa da mama, por uma noite. Contabilizam rapidamente suas perdas e ganhos, e resolvem encarar; eram poucas as alternativas.

Ao final da exibição, a primeira sensação que tive foi de estar exposto a uma aragem refrescante. O filme prima pela simplicidade e delicadeza que, aliás, costumam caminhar de braços dados - às antigas. Acompanhamos, em pouco mais de uma hora de narrativa, a quebra de conceitos viciados, que delimitam (escravizando) infância, juventude, maturidade e velhice, como entidades estanques.

Não é de hoje que procuro demonstrar que deve haver (e HÁ) um constante movimento de cá para lá, e vice-versa, desafiando os nossos métodos de contar o tempo – e adjetivá-lo.
Fico sempre incomodado quando ouço comentários do tipo ‘criança é assim...’, ‘velho é assado’, ‘jovem é deste jeito mesmo...’
Nos esquecemos que somos uma corda esticada sobre o abismo e toda ela somos nós. Com direito a nos movimentarmos à vontade por toda a sua extensão. Livres, por favor.

O comportamento de todas aquelas personagens, pelo tempo que nos é dado observá-las, nos vêm lembrar que, de mamando a caducando, somos todos ávidos de vida.

Simples. Como fogo.

domingo, 10 de janeiro de 2010

MENINO

Arejado, claro, azul, como este domingo que hoje faz. Só ele, Mario Quintana, para traduzir esta leveza:

Parque

Domingo. Disponibilidade. Em todas as testas há um letreiro: ALUGA-SE ESTA CASA.
Sentado no banco, olho, por entre meus sapatos, a sombra mosqueada da luz:
essas moedinhas de sol que nunca se depreciam...

Delícia de fechar os olhos por um instante, e assim ficar, sozinho, fabricando escuro...
sabendo que existe a luz.



Poeminho do Contra

Todos esses que aí estão
atravancando meu caminho,
eles passarão...
eu passarinho!



Esta vida é uma estranha hospedaria,
De onde se parte quase sempre às tontas,
Pois nunca as nossas malas estão prontas,
E a nossa conta nunca está em dia.

AZUL


2010. Ceu azul neste domingo em São Paulo. Mas uma bola de fogo se projeta no azul.

Ocorreu-me este trecho de uma carta de Sigmund Freud a Pfister, em 1910 (aludindo a suas observações que sedimentaram a psicanálise):

'É preciso ser sem escrúpulos, expor-se, arriscar-se, trair-se, comportar-se como o artista que compra tinta com o dinheiro da casa e queima os moveis para que o modelo não sinta frio. Sem algumas dessas ações criminosas, não se pode fazer nada direito'.

Na dúvida, acelere!

sábado, 9 de janeiro de 2010

DA ESCRITA

Marcel Proust escreveu em A Sombra Das Raparigas Em Flor:

‘Assim, os que produzem obras geniais não são aqueles que vivem nos meios mais delicados, que têm a conversação mais brilhante, a cultura mais extensa, mas os que tiveram o poder, deixando subitamente de viver para si mesmos, de tornar a sua personalidade igual a um espelho, de tal modo que a sua vida aí se reflete, por mais medíocre que alias pudesse ser mundanamente e até, em certo sentido, intelectualmente falando, pois o gênio consiste no poder refletor e não na qualidade intrínseca do espetáculo refletido. No dia em que o jovem Bergotte pôde mostrar ao mundo de seus leitores o salão de mau gosto em que passara a infância e as conversas não muito divertidas que ali tivera com seus irmãos, nesse dia ele subiu mais alto que os amigos de sua família que eram espirituosos e mais distintos: estes, nos seus belos Rolls-Royce, poderiam voltar para casa testemunhando certo desprezo pela vulgaridade dos Bergotte; mas ele, no seu modesto aparelho que afinal acabava de decolar, sobrevoava-os’.



Metáfora
Gilberto Gil

'Uma lata existe para conter algo
Mas quando o poeta diz: "Lata"
Pode estar querendo dizer o incontível
Uma meta existe para ser um alvo
Mas quando o poeta diz: "Meta"
Pode estar querendo dizer o inatingível
Por isso, não se meta a exigir do poeta
Que determine o conteúdo em sua lata
Na lata do poeta tudonada cabe
Pois ao poeta cabe fazer
Com que na lata venha caber
O incabível
Deixe a meta do poeta, não discuta
Deixe a sua meta fora da disputa
Meta dentro e fora, lata absoluta
Deixe-a simplesmente metáfora'


Sábado de sol em São Paulo. A ele!

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

À PALAVRA

Escrevo de forma diletante.
E por quê o faço? - você me perguntou outro dia. Tentarei ser breve.

Quando escrevo, sou levado pelo apreço à palavra e pela necessidade imperativa de expressar um sentimento, uma impressão, lavar uma roupa que se sujou, cuspir uma espinha que não desceu, reviver uma experiência, elaborá-la ou, simplesmente, deitar-lhe cores. Um pincel, a palavra.

Um farol. E com que frequência ilumina o que eu sequer sabia habitar dentro de mim. Isto é magia. Escrever é alquímico. Há um jogo de luz e sombra que fascina. Quantas vezes vou usar a palavra para me esconder - e a traio com outra mais conveniente - mas, então, a verdadeira, salto de tigre, se atira no papel e me desmascara, zombeteira. Revelando-me a mim.
Resta-me estender-lhe as mãos.

Entristece-me o descaso com que as vejo tratadas por aí. O detrator, pobre coitado, distante de saber que é a ele que avilta. E empobrece. Palavras são como neurônios, quanto mais, melhor (nem precisam ser ditas, mas devem existir). É por não conhecê-las e, portanto, não perceber a diferença que há entre apatia, tédio, preguiça, melancolia, luto e tristeza, que hoje tudo virou depressão.

As palavras são misteriosas, e eu as reverencio com zelo de artesão. São esfinges, muitas vezes. É mister decifrá-las. Lustrá-las bem. Então as vigio. E me ausento para, de longe, atrás das cortinas, perscrutá-las, e olhar devagar para elas. Sem formalidade, puro encantamento. É imprescindível deixá-las livres. Escravizá-las é, como para os humanos, o pior castigo.

Mas, atenção, cuidado com seu canto de sereia. Palavras não são santas e, ao perceber nosso encantamento, nos tentam confundir com sua beleza. Tramam entre si, e vêm à passarela as mais sedutoras, sugerindo um parágrafo inteiro de idílio. Quem resistiria a um bacanal com cântaro, lápide, crepúsculo, sapoti, solitude?! A-ca-lan-to. Força, meu caro! Há que se resistir ao contra-senso de alinhar estas beldades, em detrimento do laboro para a qual as convocamos.

É necessário domá-las. Domar é diferente de domesticar. Sem rudeza, por favor. Elas são belas, portanto frágeis. Que faço, então? As recolho na palma da mão, as acaricio, tiro-lhes um cisco do olho e só as devolvo ao papel quando se acende a lamparina – palavra mais bela.

Não precisamos de mapa - inclusive porque na maior parte do tempo não temos idéia de para onde vamos. Mas vamos juntos - alguma luz - a mão e o barro, ao encontro da aventura que se revela ora a nossa frente, ora profundamente dentro de nós.

Choramos, às vezes; rolamos de rir, outras tantas; nos debruçamos sobre abismos, sobrevoamos canyons, descemos aos infernos.
Surpreendemo-nos. Esta, a melhor viagem.

Quem é devoto da palavra, dela não escapa, bem sei. Ela é exigente, mas redentora e libertária.

Portanto te afirmo: É através desta senhora, que é toda juventude e frescor, que o disforme oco que me habita encontra meios de se expressar, livre do meu comando todo vicio. E assim desalojado, sou obrigado a produzir mais e melhores palavras para formatar este mosaico que vai dar em mim. E me cobrir de panos, uma outra vez. Para que tudo recomece e eu permaneça vivo.

Alinho-me a um mestre, artesão de palavras, o nosso Chico, e as reverencio, por puro prazer: ‘Passas sem ver teu vigia catando a poesia que entornas no chão.’

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

RUSSELL

Prólogo da Autobiografia de Bertrand Russell (1892/1970):

PARA QUE VIVI

Três paixões, simples mas avassaladoras, me dominaram a vida: o desejo de amor, a busca do saber e a insuportável piedade pelo sofrimento humano. Três paixões, como vendavais, me lançaram aqui e ali, em rumo desordenado, sobre as profundezas de um mar de angústia beirando o desespero.

Busquei o amor, primeiro, por trazer consigo o êxtase – êxtase tão imenso que, muitas vezes, teria de bom grado sacrificado todo o resto de meus dias por algumas horas de felicidade. Busquei-o depois para alívio da solidão – a terrível solidão na qual uma trêmula consciência vê, dos confins do mundo, o frio, imponderável e inerme abismo. Busquei-o, enfim, porque, na união do amor vislumbrei, em mística miniatura, um esboçar da visão do paraíso imaginada por santos e poetas. Foi o que busquei e, embora talvez pareça bom demais para um ser humano, foi – finalmente – o que encontrei.

Com idêntica paixão, busquei o saber. Quis entender os corações dos homens. Quis saber por que brilham as estrelas. E tentei captar o significado da potência pitagórica na qual o número sobrepuja o fluxo. Disso, um pouco, mas não muito, consegui. Amor e saber, no que me foi possível, elevaram-me aos céus. Mas, sempre, tristeza e pena traziam-me de volta à terra. Ecos dos gritos de dor reverberam em meu coração. Crianças famintas, vítimas torturadas pelo opressor, velhos indefesos – carga odiada pelos filhos – e todo um mundo de solidão, pobreza e dor, caricatura do que deveria ser a vida humana. Desejo aliviar o mal mas não consigo, e também eu sofro. Foi essa minha vida.

PESSOA

Foi logo cedo, enquanto caminhava com Bento neste verão sem sol, que Pessoa - ele, outra vez - apareceu de repente:

'Sim, sei bem
Que nunca serei alguém.
Sei de sobra
Que nunca terei uma obra.
Sei, enfim,
Que nunca saberei de mim.
Sim, mas agora,
Enquanto dura esta hora,
Este luar, estes ramos,
Esta paz em que estamos,
Deixem-me crer
O que nunca poderei ser'.

Pois bem. Aí está.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

LIBERDADE

Em "Uma Aprendizagem Ou O Livro Dos Prazeres", de Clarice Lispector, Lóri vai ao encontro de Ulisses e resolve que não quer chegar de mãos vazias. Escreve, então, para lhe entregar:

'Existe um ser que mora dentro de mim como se fosse casa dele, e é. Trata-se de um cavalo preto e lustroso que apesar de inteiramente selvagem - pois nunca morou antes em ninguém nem jamais lhe puseram rédeas nem sela - apesar de inteiramente selvagem tem por isso mesmo uma doçura primeira de quem não tem medo: come às vezes na minha mão. Seu focinho é úmido e fresco. Eu beijo o seu focinho. Quando eu morrer, o cavalo preto ficará sem casa e vai sofrer muito. A menos que ele escolha outra casa e que esta outra casa não tenha medo daquilo que é ao mesmo tempo selvagem e suave.
Aviso que ele não tem nome: basta chamá-lo e se acerta com seu nome. Ou não se acerta, mas, uma vez chamado com doçura e autoridade, ele vai. Se ele fareja e sente que um corpo-casa é livre, ele trota sem ruídos e vai. Aviso também que não se deve temer o seu relinchar: a gente se engana e pensa que é a gente mesma que está relinchando de prazer ou de cólera, a gente se assusta com o excesso de doçura do que é isto pela primeira vez'.


Em "O Rio Que Corre Estrelas" aludi a um acontecimento da minha infância de interior:

'Parece que meu pai gosta de pássaros. Comprou na cidade uma dezena de periquitos australianos e construiu em casa um viveiro de tamanho razoável para que não se debatessem na gaiola. Alimentava-os com a própria mão: alpiste, painço, banana e mamão. Um festival de cores e cantos, aquele pedaço de quintal.
Eu gostava de colocar o dedo nas frestas do arame tentando contato, mas eles voavam em debandada para o lado oposto. Comecei a duvidar de sua alegria naquele viveiro confortável.
Na noite em que sonhei com a invasão dos indiozinhos e suas flechas, levantei da cama, pé ante pé e, seguro, abri a janela da prisão, temendo o alvoroço que despertaria toda a casa. Mas foi em silêncio sagrado que eles, um a um, bateram asas para a liberdade. Eu ainda não sabia sobre o destino dos pássaros cativos quando libertos - e fiz a minha parte.
No dia seguinte o gato Simão foi acusado de ter promovido a fuga. Fechei-me em copas porque não teria como explicar a tragédia que havia evitado. Covardemente solidário permaneci ao seu lado nos dois dias que durou o castigo.
Até hoje não aceito o convite de meu amigo australiano para conhecer a terra de onde migraram aqueles passarinhos. Este lugar com sua assepsia e civilidade não comporta a mim com os meus pecados'.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

TERCEIRIZAÇÃO: O QUE É

Levantou da cama e foi direto tomar o café da manhã que a empregada preparara de acordo com a orientação do nutricionista que, por sua vez, seguira as determinações do médico nutrólogo, após avaliar o check up de rotina. Despachou o filho mais velho, 13 anos, para o psicólogo (problemas de identidade sexual; sonhos recorrentes com libélulas), a do meio, 9, para o fonoaudiólogo (começou trocando o S pelo T, depois o V pelo G, mas quando chamou o tio de pai, não deu mais para negligenciar) e a caçula, 5, para a aula de reforço no inglês – Será que essa criança tem problema?!

A empregada se encarregou de entregar os dois cachorros para o passeador de cães, levou ambos os gatos para fazer companhia à vizinha escritora, e deixou entrar a personal organizer que viera dar um trato nas gavetas dos armários, desde o closet até a cozinha. Necessário correr com o trabalho porque ainda às 11 chegará a personal stylist (mais modernamente: trend coach) que definirá, nesta terceira abordagem, o estilo de roupas a ser adotado pela cliente neste verão. Isto mais tarde, porque agora quem chega é o primeiro coach, à guisa de desenvolver competências diversas, indispensáveis ao desempenho adequado neste universo competitivo – seja lá o que isso represente. Máximas deste jovem profissional: - Produzir mais e melhor. Encontrar formas de causar real impacto nos resultados. Implementar mudanças. Fazer a diferença.
Tudo assim mesmo, meio difícil de compreender. - Mas eu preciso, que se há de fazer?!

Ela se lembrou de escovar os dentes. By herself. Pediu licença e antes de chegar ao banheiro ouviu tocar o celular. O assessor financeiro sugeria imediata mudança nos investimentos: a bolsa caiu. Ela quase tropeçou na bolsa, mas seguiu célere, após a resposta de praxe: - Você é quem sabe!
Claro que às vezes manifesta sua opinião: - Faça o que achar melhor!

A manicure e o pedicuro chegaram juntos, portanto ela se encontra agora sentada na cadeira, braços e pernas estirados. Visto de longe ela parece se decompor em partes. Pura ilusão. Ela está mesmo é se pro-du-zin-do. Compondo-se. Acredite.

Neste meio tempo o jardineiro já se encarregou de podar a roseira, tirar umas duas folhas secas dos gerânios e regar o jardim. Aproveitou e retirou dois ramos amarelados da cidreira, na horta. O piscineiro há muito deixou a água no ponto de receber o personal trainer, que hoje é quarta-feira, dia de ensaiar um triatlo. Em meio a tantos afazeres ela ainda se lembra que é necessário convocar a decoradora porque está pensando em trocar o tapete do banheiro. E pede à empregada para ligar diretamente ao nutrólogo a fim de saber se hoje – só hoje – pode substituir o alface pelo agrião.
Gostaria imensamente de folhear a Caras Argentina, mas a personal cultural vai cobrar a leitura da Herta Müller, e ela ainda não conseguiu vencer a introdução.

OK, almoçou, (o agrião foi liberado, ah, que maravilha!), malhou, recebeu as crianças de volta. À tarde mandou o mais velho para a aula de balet, a do meio para a terapia ocupacional e a caçula para a aula de mandarim – É óbvio que o mundo vai ser administrado a partir da Ásia Oriental.
Tudo isso depois do culégio (é assim que ela fala), evidente.

Pelo meio da tarde chegou o astrólogo para as projeções de Ano Novo (2010 será especialmente introspectivo - declarou), seguido da taróloga, para informar se as quadraturas anunciadas no mapa encontravam ressonância nos arcanos.

Deus do céu, que cansaço!

O marido ligou de Dubai. Fechara bons negócios. Encontrava-se eufórico no bar do hotel. Afrouxava a gravata, descalçava um pé. Sugeriu trocar o mandarim da criança pelo árabe – Grandes chances do mundo ser administrado a partir do Oriente Médio!
Ela prometeu ‘levar pra terapia’.

As crianças chegaram novamente. Logo a seguir entrou Marga, a contadora de histórias e narradora de filmes. Formou-se uma pequena confusão. O mais velho queria ouvir pela milésima vez As Desventuras de Sininho, um clássico; a do meio pedia que narrasse Tuto Tobre Mina Mãe e a caçulinha do papai implorava informações mais detalhadas a respeito de outro clássico: Matou A Família E Foi Ao Cinema.

Ela perscrutava de longe, feliz. Esboçou um sorriso. Doce, terno. Realizado. Após uma rápida consulta ao serviço meteorológico, - amanhã o dia começa com o tai chi no jardim - dormiria na paz do dever cumprido.
Cerrou as cortinas.

AINDA LÁ





Postando estas fotos, revivendo tudo, ocorreu-me uma canção antiga do Walter Queiroz, Pode Entrar. Você conhece? É assim:

A casa escancarada, a lua ali
Meu cachorro nunca morde,
meu quintal tem sapoti.

Tem um roseiral crescendo lindo
quem for louco ou for poeta,
pode entrar,
seja bem vindo.

Aqui passa o bonde da Lapinha,
passa a filha da rainha,
passa um disco voador

Às vezes ele gira, para e pisca
como quem quase se arrisca
a parar pra conversar.

Mas não me sinto só,
tenho um vizinho
que é um bêbado velhinho
que acredita no destino.

Ele mora em cima do arvoredo,
ele tem muitos brinquedos,
ele sempre foi menino...

ESTILO




Quando cheguei a São Paulo, muitos anos atrás, fui morar em casa de uma família amiga dos meus pais, de priscas eras. Não poderia ter sido mais feliz. Uma casa animada, cheia de música, de comida boa, de surpresas, de afeto. Tudo orquestrado pela dona da casa, uma das criaturas mais envolventes que já tive oportunidade de conhecer. Bonita, divertida, temperamental, desbocada, seriíssima, solidária, a 'Moreninha da Vergueiro' promove um daqueles raros encontros que se tornam indeléveis à passagem do tempo. Deixa marcas porque, anacrônica nestes tempos globalizados, ela tem estilo. Personalidade.

Há algum tempo não nos encontrávamos. Quando meus pais estiveram aqui no final do ano passado, ela nos ofereceu um almoço em seu apartamento (a casa onde moramos na Vergueiro não existe mais, virou estação do Metrô). Hoje ela mora em um cenário que, de tão original, fluorescente e personalizado, deveria ser aberto à visitação pública.
- 'Pelo menos aos domingos, Moreninha, das quatro às seis, naquele horário tosco' - brinquei com ela enquanto degustava o frango no açafrão, apenas uma de suas especialidades. Rimos muito imaginando a cena toda: as pessoas chegando, dando tratos à bola para saber se estão diante de um brechó, uma produção da Casa Cor, um Museu de Arte Sacra, de Arte Profana, ou vieram parar na gravação de um filme do Almodovar. Um Fellini, talvez.
Nada disso. As pessoas entrariam em estado de graça. Pela explosão de cores, o lúdico dos detalhes, pela fidelidade a si mesma, pela audácia infantil e, então, a beleza.

O cenário onde esta senhora transita enquanto lá embaixo a violência, a corrupção, a injustiça pensam fazer a festa, é onde a festa efetivamente acontece. Todos os dias. Ao seu comando.

Poderia postar uma foto sua para embelezar esta página - ela me autorizou - mas optei por trazer alguns fragmentos de sua casa, a fotografia mais verdadeira de sua alma multifacetada.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

O CHAMADO

Eu mal acabara de aprender a ler, fui à mesa de trabalho de meu pai, e ali, embaixo do vidro que a revestia, ao lado de fotos em preto e branco e recortes de jornal, estava este texto do Rui Barbosa, que eu sequer desconfiava quem fosse:

'De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver triunfar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha de ser honesto'.

Rui Barbosa viveu entre os séculos 19 e 20.

Em 2009 Fernanda Montenegro apresentou um apanhado do pensamento de Simone de Beauvoir, ao qual intitulou 'Viver Sem Tempos Mortos'.


'Capitão, o tempo urge!'

Boa semana!

domingo, 3 de janeiro de 2010

AS VITRINES

Anos atrás, quando ainda morava em Pinheiros, promovemos em casa alguns recitais de poesia e prosa. Em um deles, As Vitrines, Alessandra Veloso - que o protagonizou - incluiu estes dois poemas no repertório. O primeiro é de minha autoria (e aqui homenageia meu amigo Domingos que, aliás, o interpreta muito bem), e o segundo é da lavra pulsante de Elisa Lucinda.
As Vitrines foi produzido por Alessandra, dirigido por mim, e teve sonoplastia de Wilsinho Azevedo.


MORCEGO

Tenho medo da noite,
medo do que se cala.
Ao escuro, ao silêncio da noite
reagimos em casa com lampiões, candeias e lamparinas.

Minha sorte é que temos um pé direito alto,
sem forro.
Subo para ali e me assento nas vigas,
nas madeiras do teto.

Sento sobre minhas pernas vergadas
e vejo a vida de cima,
fugindo dos entremeios,
das discussões ociosas,
da falta de discussão.

Tenho medo, sim, é verdade,
mas aqui em cima estou a salvo.

Assobio imitando corujas,
abro e fecho os braços,
sorrio com presas pontiagudas,
morcego.



COR RESPONDÊNCIA

Remeta-me
os dedos
em vez de cartas de amor
que nunca escreves
que nunca recebo.
Passeiam em mim estas tardes
que parecem repetir
o amor bem-feito
que você tinha mania de fazer comigo.
Não sei amigo
se era seu jeito
ou de propósito
mas era bom
sempre bom
e assanhava as tardes
Refaça o verso
que mantinha sempre tesa
a minha rima
firme
confirme
o ardor dessas jorradas
de versos que nos bolinaram os dois
a dois.

Pense em mim
e me visite no correio
de pombos onde a gente se confunde
Repito:
Se meta na minha vida
outra vez meta
Remeta.

sábado, 2 de janeiro de 2010

BARRIGÃO & TANQUINHO


O ano novo chegou há mais de vinte e quatro horas mas Barrigão ainda não parou de aplaudir. É desde a véspera que ele se refastela. Encarou de tudo: das gorduras trans às gorduras teens, sem esquecer daquelas delícias de índice glicêmico altamente elevado. Acedeu à Tanquinho – acanhado num canto – apenas no que toca aos flavonóides das uvas; e ainda assim fermentadas em álcool, um Cabernet Sauvignon da melhor qualidade. Tema, aliás, que o mancebo encarou com galhardia: passou a língua num destilado, petiscou um saquê oriental, prestigiou o produto nacional com uma talagada da cachaça mineira, mas quase se afogou mesmo foi na cevada que gelava desde a semana anterior. – Olha os triglicerídios! - Tanquinho tentou acudir. Em vão. 'Não se deve levar a serio uma criatura que se dá ao desfrute de contar calorias' - uma das máximas de Barrigão.

A juíza amiga comentou, jocosa: - Humm, Barrigão hoje tá mais folgado do que paletó lascado atrás...

Tanquinho voltou à carga e apontou a bela bandeja de frutas no centro da mesa, os sanduíches naturais ao canto, o licopeno das maçãs de braços abertos, a jarra de água mineral – Entre um gole e outro de cerveja, Barrí - Mas Barrigão não estava para brincadeira e não admitiu intervenção em seu latifúndio. Pegou pelo talo a cereja mais viçosa da bandeja e enfiou goela abaixo de Tanquinho, comentando, sôfrego: - vai te divertindo com essa aí que daqui a pouco eu volto com mais antioxidantes.

Não pode faltar lentilha em ceia de fim de ano – é a sabedoria popular - pois o danado, já mal intencionado de véspera, pediu à Vera que não esquecesse do bacon torrado e das rodelas caprichadas de lingüiça calabresa, um paio, talvez.
- Tanquinho que espere a volta das férias para encarar a leguminosa naquele tempero esquálido à cebola e alho, que hoje não é dia para ninharia.

Do peixe grelhado manteve distância, de olho no pernil fumegante no forno. “EU DETESTO ÔMEGA 3!” – bradou para si mesmo e seguiu em frente.
Dos queijos, só os amarelos - o mundo inteiro sabe que são os mais gostosos; os únicos, inclusive. Patê? De fígado de ganso, evidente; nunca mais pastinha de atum, ervas finas, e ao diabo aquele mexidinho de tofu com azeite, argh! Mesmo destino para a torrada integral. – Vão se divertir na suíte do capeta, vocês dois. E não esqueçam de levar o iogurte natural, o blaquet de peru, a margarina light, a linhaça e a quinua, e que os filés de peixe e de frango se consumam juntos, de mãos dadas, nas labaredas do inferno. – Exasperou-se de vez.

Lá pelas tantas, encontrei Barrigão, todo suado, tirando do forno baguetes em fatias grossas, recobertas por gorgonzola, presunto gordo e um parmesão para gratinar. Regou duas delas no azeite extravirgem e ofereceu à Tanquinho – Ômega 3, Tan, do melhor.
Sem compreender o deboche, nosso saradinho comentou, inocente: - Não quer um suquinho de clorofila, Barrí?
Barri lhe deu o calado como resposta e entornou outro copo de cerveja sem espuma. Saiu ventando.

Mais tarde, completamente à vontade com sua revolução-de-fim-de-ano, Barrigão ainda forneceu sua secretíssima receita de lombo recheado, só para provar que – ao contrário do que muitos pensam - este corte do suíno não deve ser desconsiderado. Anote aí: Depois de abrir o lombo tipo uma manta, temperar com alho, sal e pimenta do reino. Cominho, para quem gosta; noz moscada, para quem pode. Eu, particularmente, gosto de dar uma lambuzada com uma mistura de azeite, cachaça e molho de ostra. Fatiar uma couve (umas duas folhas tá de bom tamanho), picar um alho e passá-los rapidamente pela frigideira com azeite – com banha de porco fica mais saboroso. Reserve – adoro receita que pede ‘reserve’.
Vamos ao recheio: Retire do plástico uma boa quantidade de lingüiça e macere com a mão. Comece o recheio com ela, depois traga a couve (ok, umas três folhinhas, vai) e o alho, e termine o serviço com fatias de queijo coalho. Muito queijo coalho. Colocar alguns alhos inteiros incrustados no lombo – esta será a parte de Tanquinho; além da couve, naturalmente. Enrolar e costurar como um rocambole. Pré-aquecer o forno e deixar o lombo em papel alumínio a 180 graus por 1 hora e ir avaliando. Retirar o papel para dourar. É de lamber os beiços. Ah, capriche no coalho. Do contrário ele será sugado pelo cozimento; não corra este risco, pelo amor da santa.
Deve ser consumido de preferência em um domingo de sol, a rede armada a dois passos da mesa.

O tempo não para. É sabido que quando o diabo não nos quer mais, a gente se volta para Deus. Nesta manhã, com a desfaçatez do despudor, foi a Tanquinho que Barrigão pediu a jarra de água de coco, ali, na cabeceira. – Geladinha, Tan - ainda enfatizou, acrescentando com humildade: - E se quiser me oferecer novamente aquele delicioso suco de clorofila...aceito, sim senhor!

Tanquinho já se preparava para comemorar, quando se lembrou que o dia apenas amanhece, a geladeira continua gorda, e afinal – maldito Vinicius – hoje ainda é sábado.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

AINDA A FESTA


Do meu conterrâneo Ferreira Gullar:

ANO NOVO

'Meia-noite.
Fim de um ano, início
de outro.
Olho o céu:
nenhum indício.

Olho o céu:
o abismo vence o
olhar.
O mesmo espantoso silêncio
da Via-Láctea feito um ectoplasma
sobre a minha cabeça:
nada ali indica
que um ano novo começa.

E não começa
nem no céu nem no chão do planeta:
começa no coração.

Começa como a esperança de vida melhor
que entre os astros não se escuta
nem se vê
nem pode haver:
que isso é coisa de homem
esse bicho estelar
que sonha (e luta).'

POÉSIE

Um Paul Geraldy para começar bem o ano:

'Não sejamos muito exigentes:
nem sempre a sorte é acessível
a todo mundo, a toda a gente.
Ela é só dos menos sensíveis,
ou dos ricos, naturalmente.

Não desejemos o impossível.
Devemos estar contentes
de sermos quem somos:
simplesmente namorados intermitentes
loucamente se namorando
de vez em quando.

É já uma grande coisa
a gente ser dois, à parte, entre os mortais,
dois que se bastam mutuamente
e não se aborrecem demais.

E se somos mais exigentes,
se às vezes a alma ainda se sente
solteira e triste, isso é explicável:
temos um gênio insuportável...
ou somos muito inteligentes.'


No original:

Sagesse

'Ne soyons pas trop exigeants:
le Bonheur n´est pas accessible
à toutes les sortes de gens
Il faudrait être moins sensible,
ou bien avoir beaucoup d´argent...
Ne demandons pas l´impossible.
Nous devons nous trouver contents
d´être les êtres que nous sommes:
des amoureux intermittents
qui sont fous l´un de l´autre en somme
de temps en temps.
C´est déja beaucoup d´être deux,
deux côte a cote sur la Terre,
qui peuvent souffrir entre eux
et vivre sans trop se taire.
Et si l’on est plus exigeant,
si l’on se sent en y songeant
l’âme encor trop célibataire,
c’est qu’on a mauvais caractère…
ou qu’on est trop intelligent'.