quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

DA JANELA


A psicanálise, você sabe, foi criada por Freud, no início do século passado, quando então foram postulados conceitos que sobrevivem até hoje. Em nossos tempos, é com muita naturalidade que as pessoas se referem ao Inconsciente, aos atos falhos, complexo de Édipo e outras expressões que foram ganhando a boca do povo no decorrer destes anos.

Acho divertido fazer analogias entre os postulados deste conhecimento e algumas manifestações artísticas, especialmente as literárias.

Sabemos que o termo Inconsciente define uma instância obscura e pulsante, de onde emanam paixões, medos, sensações, que podem repercutir neste ou naquele comportamento. Pois, veja você, contemporâneo do médico austríaco, lá em Portugal, Fernando Pessoa escrevia:

'Para onde vai minha vida e quem a leva?
Por que faço eu sempre o que não queria?
Que destino contínuo se passa em mim na treva?
Que parte de mim, que eu desconheço, é que me guia?

O meu destino tem um sentido e tem um jeito,
A minha vida segue uma rota e uma escala,
Mas o consciente de mim é um esboço imperfeito
Daquilo que faço e sou: não me iguala'.

Podemos relacionar as inquietações do poeta, à existência deste universo obscuro e que se constitui no ‘destino contínuo que se passa em mim na treva’, correto? Creio que sim.

Freud em sua configuração do aparelho mental (EGO – ID – SUPEREGO) atribuiu ao ID o reservatório da energia psíquica onde se ‘localizam’ estas pulsões.
Muitas décadas depois, ao Sul do Equador – onde não há pecado - Chico Buarque indagou, com a perspicácia dos grandes artistas:

'O que será, que será?
Que vive nas idéias desses amantes
Que cantam os poetas mais delirantes
Que juram os profetas embriagados
Que está na romaria dos mutilados
Que está na fantasia dos infelizes
Que está no dia a dia das meretrizes
No plano dos bandidos dos desvalidos
Em todos os sentidos...

Será, que será?
O que não tem decência nem nunca terá
O que não tem censura nem nunca terá
O que não faz sentido...

O que será, que será?
Que todos os avisos não vão evitar
Por que todos os risos vão desafiar
Por que todos os sinos irão repicar
Por que todos os hinos irão consagrar
E todos os meninos vão desembestar
E todos os destinos irão se encontrar
E mesmo o Padre Eterno que nunca foi lá
Olhando aquele inferno vai abençoar
O que não tem governo nem nunca terá
O que não tem vergonha nem nunca terá
O que não tem juízo...'

Pois bem, Chico, é o vibrante ID que não tem governo nem nunca terá, que não tem censura nem nunca terá.

Colocando Jorge Amado neste sarau e lembrando que esta canção foi o tema principal do filme Dona Flor E Seus Dois Maridos, digamos que Vadinho era todo ID, e Teodoro, a encarnação possível do SUPEREGO. Coube à delicada e fogosa Flor articular estas duas potências em seu tabuleiro sacolejante: o EGO.

Se você tem algum interesse por psicanálise deve saber que o principal objetivo de sua prática é fazer aflorar a maior quantidade possível de material inconsciente para que possa ser ‘avaliado’ ali, à luz da consciência, e assim, proporcionar novas alternativas de comportamento ao ‘analisado’. As técnicas concernentes não são objeto destas reflexões, mas veja o que Clarice Lispector escreveu, referindo-se a seu ofício de escritora:

‘A caminhada é longa, é sofrida, mas é vivida. Não estou brincando com palavras. Encarno-me nas frases voluptuosas e ininteligíveis que se enovelam para além das palavras. Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa não palavra – a entrelinha – morde a isca, alguma coisa se escreveu. Uma vez que se pescou a entrelinha, poder-se-ia com alívio jogar a palavra fora.’

Sou psicoterapeuta. ‘A palavra pescando o que não é palavra’: Não é outro o meu ofício. E, sim, minha vibrante Clarice, quando a entrelinha morde a isca, é o inconsciente quem se manifesta.

Por intuir, contudo, que a coisa não terminaria por aí, Clarice vai mais longe: ‘A não-palavra ao morder a isca, incorporou-a. O que salva então é escrever distraidamente...’
Escrever distraidamente poderia ser a ‘atenção flutuante’, modo como a psicanálise orienta o analista a ouvir seu paciente. Com a menor expectativa de que for capaz, um ouvido o menos viciado possível. Aliás, esta prerrogativa é de grande utilidade na vida cotidiana e, provavelmente, facilitaria muitos relacionamentos e abriria porta para a verdadeira intimidade, quando é isto o que se pretende. Tente, ao avaliar uma situação, conter suas tendências pessoais, preconceitos, pressupostos teóricos, sua ‘experiência’ e afins - Experimentar uma atenção flutuante - Duvidar um pouco de si mesmo pode ser, eventualmente, providencial. Trabalho para uma vida inteira, ninguém duvida, mas vale.

Fala-se hoje, até no cafezinho, de pessoas que apresentam distúrbio bipolar: aquelas que alternam períodos de hiperatividade, extremada alegria, imaginação desenfreada, com outros de profunda tristeza, apatia e desinteresse geral. Sol vibrante e noite preta.

- Nunca sei com que humor vou encontrá-la em casa – ouvi, de orelhada, enquanto passeava com Bento, um dia destes.
- Tua mulher é bipolar, cara – emendou o companheiro de caminhada. E seguiram adiante.

Jamais saberemos o que se passa naquela intimidade sugerida (vai ver ela é apenas temperamental), mas no começo do século passado, Michel Proust escreveu, em sua A Procura do Tempo Perdido, aludindo a uma recorrente variação de estado de espírito de seu protagonista:

‘E aquilo (a tristeza da noite) duraria até a manhã seguinte, quando os raios de sol apoiassem suas barras, como o jardineiro sua escada, contra o muro coberto de capuchinhas que subia até minha janela, e eu saltasse do leito para descer logo ao jardim sem já me lembrar de que a noite voltaria a trazer consigo a hora de separar-me de minha mãe. E assim, aprendi a distinguir estes estados que em mim sucedem durante certos períodos, e que dividem entre si cada um de meus dias, chegando cada qual para escorraçar o outro, com a pontualidade da febre; contíguos, mas tão alheios um ao outro, tão desprovidos de quaisquer meios de comunicação entre si, que, quando um deles domina, não posso mais compreender o que desejei, temi ou fiz no outro estado’.

Não é ilustrativo?

Paremos por aqui. Você também fará incontáveis associações.

São muitos os pigmentos de uma mesma cor, inúmeras as tramas de fio que resultam em um certo tecido. Tudo são filigranas que perscrutam a seiva da vida.
Janela na qual é sempre prazeroso debruçar.


Na fotografia, 'forro' de um restaurante na Ilha do Mosqueiro, no Pará.

6 comentários:

luis disse...

Um FREUD mais palatavel assim, a gente até encara, certo? acho q preciso dar mais ouvido ao meu Id...rss

silvia disse...

Estamos avisados há milênios q 'não há nada de novo sob o sol', mas recontar a vida continua sendo fascinante.

Anônimo disse...

"Quem sou é quem me ignoro e vive através desta nevoa que sou eu"

F. Pessoa se inquietou bastante com esta questão que Freud veio a chamar de inconsciente.

Tb acho um barato os 2 terem vivido na mesma época e pensarem coisas semelhantes, produzirem a partir disso e seguirem caminhos diferentes para manifestar estas sacadas.

Santana Filho disse...

Bem lembrado, anônimo.
Estes questionamentos de Pessoa tb dariam margem a uma interpretação 'mística', concorda?

'Para onde vai minha vida e quem a leva?', 'Que destino contínuo se passa em mim na treva?!', o próprio verso q vc citou...e outros tantos.

Aqui, preferi aludir aos comandos mentais internos, que é como tendo a interpretar a questão.

Abraços.

Anônimo disse...

Não há dúvida, os grandes artistas oferecem inúmeras interpretações de suas obras.

Gostei da foto; ideia bacana. abç

Unknown disse...

Intenso. Profundo. Não sei o q dizer. Me socorro de Pessoa, traduz o q me vem agora:

"O túmulo fechado,
Aberto foi achado
E vazio encontrado.

Meu coração também
É o túmulo do Bem,
Que a vida bem não tem.

Mas há um anjo a me ver
E a meu lado a dizer
Que tudo é outro ser."