quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

INFÂNCIA

Dois excertos de O Rio Que Corre Estrelas:

'Houve ali os pés de aroeira, as lonas do circo, o medo da noite. Eu acordava no meio da noite e quando conseguia falar alguma coisa, emitir qualquer som, dizia: - Mamãe, quero ir para aí.
Ela respondia de lá do fim do mundo: - Venha!
Não conseguia mexer o meu corpo, tinha apenas a boca e dizia: - Mande o papai vir me buscar.
Ele vinha e me tocava com os dedos. Sim, era o máximo que podia fazer porque não havia eu, havia cobertas sobre mim.
Eu ia devagar, reconhecendo terreno, defendendo-me de fantasmas invisíveis, trovoadas, finalmente expondo minha cara - já puxado o lençol - então me mostrando, me desnudando, e fechava novamente os olhos no exato momento em que agarrava a mão do meu pai.
Seguia assim, cego, dirigido, confiante, apaziguado, até a mansidão.
Posso, portanto, dizer: Eu conheço o paraíso. E me lembro dele.
Ele estava ali, na fortaleza daquela cabana entre mãos entrelaçadas e se chamava paz. A paz que eu vivia naquele momento e que, pelo período em que usufruía de sua centelha, era incompreensível precisar de reivindicação nas ruas'.



'Música. Há música no ar. Já não é a chuva. Violinos, talvez. Ou violões em noturnas serestas. Violões, sim.
Aqueles que, bem à distância, apaziguavam as noites atribuladas de minha infância e permitiam-me mover na cama, reconhecendo, com a pele de meus braços e pernas, a tessitura delicada do lençol e o aroma arrojado do sabão que os mantinha limpos.
Ao me permitir este discreto momento de paz e conforto começava a tecer a colcha da liberdade e a tomar intimidade com o mágico prazer que a ninguém se consegue explicar, de tão íntimo e visceral'.

3 comentários:

silvia disse...

Gosto sempre destas reminiscências do jeito q vc as constroi. Consegue falar poeticamente de medos terriveis q por vezes nos assaltam na infância.
Talvez este período da vida seja demasiadamente idealizado e as pessoas esquecem a quantas inseguranças e pauras nos sentimos expostos.

Anônimo disse...

Silêncio

Unknown disse...

Sou fã d'"O Rio Que Corre Estrelas". Adoro quando aparece aqui!