Em "Uma Aprendizagem Ou O Livro Dos Prazeres", de Clarice Lispector, Lóri vai ao encontro de Ulisses e resolve que não quer chegar de mãos vazias. Escreve, então, para lhe entregar:
'Existe um ser que mora dentro de mim como se fosse casa dele, e é. Trata-se de um cavalo preto e lustroso que apesar de inteiramente selvagem - pois nunca morou antes em ninguém nem jamais lhe puseram rédeas nem sela - apesar de inteiramente selvagem tem por isso mesmo uma doçura primeira de quem não tem medo: come às vezes na minha mão. Seu focinho é úmido e fresco. Eu beijo o seu focinho. Quando eu morrer, o cavalo preto ficará sem casa e vai sofrer muito. A menos que ele escolha outra casa e que esta outra casa não tenha medo daquilo que é ao mesmo tempo selvagem e suave.
Aviso que ele não tem nome: basta chamá-lo e se acerta com seu nome. Ou não se acerta, mas, uma vez chamado com doçura e autoridade, ele vai. Se ele fareja e sente que um corpo-casa é livre, ele trota sem ruídos e vai. Aviso também que não se deve temer o seu relinchar: a gente se engana e pensa que é a gente mesma que está relinchando de prazer ou de cólera, a gente se assusta com o excesso de doçura do que é isto pela primeira vez'.
Em "O Rio Que Corre Estrelas" aludi a um acontecimento da minha infância de interior:
'Parece que meu pai gosta de pássaros. Comprou na cidade uma dezena de periquitos australianos e construiu em casa um viveiro de tamanho razoável para que não se debatessem na gaiola. Alimentava-os com a própria mão: alpiste, painço, banana e mamão. Um festival de cores e cantos, aquele pedaço de quintal.
Eu gostava de colocar o dedo nas frestas do arame tentando contato, mas eles voavam em debandada para o lado oposto. Comecei a duvidar de sua alegria naquele viveiro confortável.
Na noite em que sonhei com a invasão dos indiozinhos e suas flechas, levantei da cama, pé ante pé e, seguro, abri a janela da prisão, temendo o alvoroço que despertaria toda a casa. Mas foi em silêncio sagrado que eles, um a um, bateram asas para a liberdade. Eu ainda não sabia sobre o destino dos pássaros cativos quando libertos - e fiz a minha parte.
No dia seguinte o gato Simão foi acusado de ter promovido a fuga. Fechei-me em copas porque não teria como explicar a tragédia que havia evitado. Covardemente solidário permaneci ao seu lado nos dois dias que durou o castigo.
Até hoje não aceito o convite de meu amigo australiano para conhecer a terra de onde migraram aqueles passarinhos. Este lugar com sua assepsia e civilidade não comporta a mim com os meus pecados'.
quarta-feira, 6 de janeiro de 2010
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4 comentários:
Não a toa se diz q 'o menino é o pai do homem'. E a arte é o q efetivamente nos protege da solidão e da loucura.
Desde cedo sua alma psicanalítica mostrou seu caráter idealista e libertário, assim como Sartre em o "O Ser e o Nada" vc cria e enfatiza a incompatibilidade entre uma manifestação da liberdade absoluta e a situação histórica do homem que acaba por determina-la, mas bonitinho mesmo foi a coragem manifesta de proteger o gato sem a coragem efetiva de revelar o nome do Santo Milagreiro autor da ação.
Já do meu lado de leitor intuí, (e para isso contribuiu muito minha origem lotérica), que sonhar com indiozinhos e suas flechas dá águia na cabeça...
Salve San, Sartre e Joãozinho 30...
Achei uma graça o comentario de Dom, especialmente seu lado leitor...
Clarice, que nunca esteve completamente ausente, tem reaparecido à toda, bem de acordo com sua importância. A biografia Clarice, (lê-se Clarice vírgula)do Benjamim Moser, recém-lançada está demais, imperdível.
Tudo certo.
Bem vindo amigo, vc está em casa.
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