domingo, 17 de janeiro de 2010

PAIXÃO


Outra vez a paixão.

A recorrente graça, a justa inquietação diante do espelho, o lixo empurrado para debaixo do tapete e, da janela, o aceno irrecusável da montanha russa.
Três loopings no escuro - só pra começar – acionando cometas em um fake céu de estrelas. Cadentes e ensandecidas. E no ponta-cabeça, braços estirados no vazio. Sem gritar. Porque é grave, gutural. Grave, não se engane. A paixão é aguda em sua dinâmica, mas ruge em contralto no peito. Digamos que você a credencia com a seriedade de um Pavarotti, embora a interprete com a destemperança e os trinados de uma Dalva de Oliveira.

A paixão traz na bagagem tantas promessas e uma tamanha vitalidade, que qualquer pequena ameaça de fenecimento promove uma imediata cianose na alma. Seguida de uma brutal falta de ar que, desta vez, sim, te levará a nocaute. Por isso tantos telefonemas, tantos emails, tantos torpedos e chamados, e as esperas, as esperas, as esperas. Pelo telefone, os emails, a campainha, as chamadas, os sinais de fogo. A confirmação. É sobrevivência, esqueceu?

Uma sentença sempre pronta para ser jorrada boca afora: - Abram estas janelas que eu preciso RESPIRAR!

Que não é dita, porque paixão é para ser vivida na poluição, os olhos ardendo, a boca seca. Ou não deveria, mas são poucas as que resistem a uma boa lufada de ar. Ar livre é perigosíssimo porque paixão tem pavor de espaços abertos.

Esta louca, além da fumaça, solicita óculos escuros, descongestionante nasal, cortinas cerradas, mudança de repertório no Ipod e uma miopia cavalar, de aparecimento súbito. Mudança de foco. Nada muito diferente de neon, taquicardia, adrenalina e Disney World terá qualquer importância. E vamos combinar que um tempo naquela vidinha medíocre, naqueles amigos sempre às voltas com a rotina de suas relações padronizadas, há muito se fazia necessário. O lema permanecerá aquela bela frase com a qual você fuzilou a amiga que sempre desvalorizou estes sentimentos arrojados: - O amor entorpece os acomodados; a paixão mobiliza os incomodados. Tá?

Será assim que iremos rasgar o manto diáfano da mediocridade.

E segue, apertando a bolsinha na axila, o sapato de salto, lenço vermelho no pescoço e a saia muito justa lascada atrás.

É quase certo que paixão é para ser vivenciada de copo na mão. Será com ele, alguns comprimidos de diazepam, duas ou três canções exasperantes e aquela única amiga que sobreviveu a seu bombardeio (‘afinal, ele está ou não está interessado em mim?’) que você enfrentará este mundo hostil. Sim, porque passada a projeção geral de início, ninguém, em juízo de razão, terá muita paciência de participar deste tour-de-force a seu lado. (Você já deve ter percebido que as pessoas não são propriamente um primor de sensibilidade, correto?). E mesmo esta companheira sobrevivente correrá serio risco de evaporar quando você finalmente abrir seu coração: ‘afinal, ele está me amando, ou não está?’

Diante de tamanha vulnerabilidade, você se sentirá flagrada pelas garras da lei. Todas as suas (antigas) qualificações, sob júdice - Uma farsa -. E o seu pior, a sua sombra, correndo solta sem segredo de justiça. A um passo do desmascaro. Que em outros tempos não seria grande coisa, afinal você também aprendeu muito cedo que a língua do povo é contumaz traiçoeira, mas, agora, qualquer avaliação de sua frágil pessoa passa pelo cajado deste juiz implacável, e atender a suas exigências vai se tornando uma gincana cada vez mais exaustiva.

Mas...but, sempre um but...um belo dia você sente uma tremenda saudade daquele pijaminha esgarçado que foi parar no fundo da gaveta desde que as langeries pretas e vermelhas roubaram a cena. E vai se lembrar que aprendeu a amar com a Bethânia (‘D-R-A-M-A, e ao fim de cada ato limpo num pano de prato as mãos sujas do sangue das canções’), mas que, talvez, seja hora de recorrer ao sempre jovem Nelson Mota: ‘A vida vem em ondas como o mar...’ e dar uma surfada por aí.

Como Santa Rita de Cássia realmente não dorme no ponto, você consegue o feito inimaginável de desmarcar o jantar daquela noite. E, pior, sem inventar nenhuma desculpa espetacular. Vai direto ao ponto: - Aluguei 'As Delícias De Viver Só', e tô a fim de assistir sozinha. - Só hoje, viu? – Ronrona, ao final, quase por vício.

Começou a se montar a rebelião. E o filme daquela paixão lhe vem à cabeça, de trás para frente e, vai saber porquê, detalhes da cenografia antes desapercebidos vêm à tona, diálogos negligenciados revelam a que vieram, e figurantes inexpressivos começam a ameaçar seriamente os atores principais. Tudo levará a crer que você não era tão somente a primeira atriz, mas a própria autora deste vibrante roteiro.

Será, enfim, evocando detalhes e palavras, que você perceberá, por exemplo, que o ‘mea culpa’ da noite passada era absurdamente equivocado, e que um bom vasodilatador peniano a teria poupado de acrobacias perfeitamente dispensáveis.

- Eu não acredito! – Será capaz de berrar, já em fúria.

Mas, então, o doce pássaro da liberdade estará cantando em seu ombro, e alguma tranqüilidade vai chegando, ternamente. Pega caneta e papel, e escreve, para não esquecer: Este medo, lobo voraz, devora vacas leiteiras no curral. A coragem é um carneiro pastando, comendo capim, tomando forma, ganhando peso.

Poderá, então, desligar a TV, acarinhar o travesseiro vazio, se alongar na cama, e hibernar pelos próximos dez anos quando, em outro belo dia de sol, vai abrir a janela e perceber que o parque de diversões retornou à sua rua, e ela, a montanha-russa, volta a acenar uma outra vez.

5 comentários:

Maria Helena disse...

Santana, vc se superou. AMEI.

Unknown disse...

Li e reli. Me vi. O q dizer? Vc, com estilo, nos sabe a todos. Um dia, talvez, desista dos meus enredos, dramas mexicanos de péssima roteirista. Seu texto diz tudo, em detalhes... viveu.
No fim podemos tanto nos sentir em desespero, como agradecidos pelo fato de ter a oportunidade de mais um recomeço. E dá-lhe mais novelão mexicano em cima... (só não troco de roteirista)

luis disse...

Achei divertido e pertinente.
Aguardo a versão masculina da paixão. Boa!

Ale Mello disse...

e apaguem as luzes, fechem as cortinas da casa... talvez ela passe.

Maria disse...

Paixão é um surto delicioso - principalmente qdo acaba.
Adorei o texto.